domingo, 5 de agosto de 2007

As fichas do Rui

Rui é uma personagem do meu primeiro romance, ao qual darei, em princípio, o título de Mónica. A acção passa-se na Madeira, nos anos que se seguiram ao 25 de Abril. Numa primeira revisão, decidi retirar algumas passagens, ou pelo menos transformá-las, expurgando alguns momentos de menor literariedade. Custa-me, porém, mandá-las para o caixote do lixo e então prefiro guardá-las nestá espécie de diário em que vou tornando este blog.
Rui não pretendia continuar ligado àquela gente. Fartara-se. Respondeu a um anúncio no Diário de Notícias local e empregou-se numa empresa que comercializava duplicadores e máquinas de fotocópia. No fundo, mantinha-se numa área próxima do trabalho anterior, embora como escriturário. Formou rapidamente uma opinião sobre as maiores motivações autonomistas. Pensou em fotocopiar algumas provas da corrupção a que assistia, mas desistiu da ideia, quando o seu chefe o apanhou em flagrante nessa tarefa. Inventou uma desculpa, mas o senhor Sousa, no dia seguinte, chegou com uma conversa sobre a confiança nas empresas, afirmando que o mundo dos negócios gera muitas ilegalidades, um mal generalizado, mas menor, já que toda a gente fazia por enganar o Estado, tonto seria quem o não fizesse. Manter os segredos na empresa seria um dever de lealdade de todos os funcionários. Então passou a escrever, ao final do dia, numa velha máquina, o que chamava o seu ficheiro, umas fichas numeradas, onde registava em tom narrativo as experiências por que passava. Luísa viu-o debruçado sobre a máquina, escrevendo a ficha 5.
- Para que é isso?
- Para não me esquecer. Está descansada, que não denunciarei os teus amigos.
- Meus amigos, quais?
- Os laranjas, ora quem haveria de ser? Esses fulanos que de dia são apoiantes do governo autonómico e à noite colocam bombas e pintam paredes de azul e amarelo, o Cristiano e os outros, esses que ganham as eleições metendo medo ao povo com o papão do comunismo, mas não dizem a verdadeira razão por que querem o poder, nem eles nem os padres que os apoiam, pedindo nas igrejas que votem no partido das setinhas apontando para o céu. Vê como colaboram no Jornal da Madeira. Sabes, desconfio que escrevem nessas folhas de beatas os mesmos que à noite gatafunham o Zarco, esse pasquim ascoroso dos flamistas.
- Rui, estás a tornar-te mais radical que o próprio Mário. Agora és esquerdista?
- Não, não quero saber de partidos, mas começo a enojar-me com toda esta hipocrisia.
Luísa passou-lhe a mão pela cabeça, acalmando-o, pegou nas folhas e leu:
(continua...)

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